A carregadora de sonhos



Eu havia me concentrado naquela figura raquítica, dobrada, encostada a uma parede branca e fria de um pequeno apartamento. Ela olhava para a paisagem através da grande janela que dava para o terraço. Seu olhar era de uma tristeza conformada, sabia que lá fora era grande demais para uma pessoa como ela. Lá fora havia muitas coisas que gostava. Mas havia também as pessoas que a perseguiam. Fechava os olhos com força e aí saía a primeira gota silenciosa por não saber mais o que fazer.


Ela olhava, e eu ali me fazendo fantasma a observar. Seu olhar jogava uma luz pesada para fora enquanto eu a emoldurava em minha visão-lembrança. Em seu colo havia uma tigela com biscoitos de chocolate (o nosso favorito) e em suas costas, mal repousadas às costas do pequeno sofá escuro, uma velha almofada enfadada pelo tempo contínuo de uso. Agora um barulho se fazia ouvir pelo resto do cômodo. Isso a deixava totalmente concentrada. A televisão não era apenas aquele aparelho de onde sua mãe sabia notícias e sonhava novelas. Era muito mais que isso nessa época. Ela era uma espécie de livro aberto de fácil acesso.


Por causa dela começou a ler histórias com mais gosto ainda, porque há muito que sua mãe lia e contava contos de fadas para ela. Eis aqui a primeira a incentivar esse arraigado amor pelos livros. Mas a tv também tem sua parcela cultural na vida dela. Um dia até tomou fôlego ao olhar o caderno da escola e perceber um poema vomitado nas linhas azuis da folha. Um pequeno poema. Um poema todo seu. O guardara para que ninguém visse. Agarrou-se ao caderno como quem abraça a mãe em momentos de êxtase de amor entre mãe e filho. Como um tesouro, o deixou enterrado nos fundos de seu baú de brinquedos.


Amor. Era isso que sentia agora. Muito mais agora. Olhou para a janela. Lá fora uma pombinha se fazia ouvir como lamentações de quem está preso e não pode sair, nem sequer sentir o gosto do vento. Percebeu que se sentia como essa pombinha, e um dia tinha certeza que tanto ela como a avezinha teria seu dia de glória. Decidiu que tentaria mais vezes até completar uma certa quantidade de folhas poemizadas. Ia escondendo no baú. Achava que seus escritos eram bobagens de uma menina carregadora de sonhos que tentava nas palavras realizá-los. Bem, poderia até ser isso sim. Mas ela estava decidida. Prosseguiria assim mesmo.


Ela tinha onze anos quando tudo aconteceu. Foi a primeira vez durante aqueles onze anos de vida que ela sentira uma luz diferente, a esquentar-lhe as mãos e o peito. O coração foguescente bateu como um velocista percorrendo os últimos metros que o aproximam da linha de vitória. Sabia que sua linha de vitória ainda estava longe. O importante era não mais desistir. E sentava raquítica, como gravetos dobrados, com sua tigela de biscoitos de chocolate em frente à tv no mesmo horário de todos os dias. Agora o volume ao seu lado aumentara. Aconteceu de sempre pegar seus velhos cadernos e canetas e lápis e os colocar em cima de um banquinho que possuía um desenho de papagaio. O banquinho era pequenino, e o que havia sobre ele era grande, grande como os sonhos dela.


Certa vez ouviu um poema muito bonito. Curto, mas bonito assim mesmo. Em forma de desenho animado o poema lhe fora apresentado e ela interessou-se em saber quem o teria escrito. Ficou muitos e muitos dias ouvindo aquele eco que ressoava para além das linhas escritas. O eco ia percorrendo onde, onde... Na escola de vez em quando, era surpreendida pela voz que havia naquele poema de doces perguntas e pedidos e viajava ao encontro duma paisagem singular.
Havia dias em que o céu parecia um longo campo de linhas azuis e brancas, e ela gostava de desenhar frases nelas. O céu era alto. Seu sonho repousava nele. Os dois um dia seriam tocados por ela. Ela os respeitava. Ela os amava. Por enquanto, contentava-se a caminhar por entre as pedras. Seu caminho não seria em vão. Não depois daquilo. Nunca mais seria aquela figura triste com uma porção de sonhos felizes largados no colo, entre o pó dos biscoitos e o sal das lágrimas.



Jaquelyne de Almeida Costa

Comentários

Passando por aqui pra me deliciar desta sopa extraordinária de Palavras.
Pra mim, Soh vc tem esse tempero.
Bjow no coração.
Passando por aqui pra me deliciar desta sopa extraordinária de Palavras.
Pra mim, Soh vc tem esse tempero.
Bjow no coração.
Giuseppe Menezes disse…
Belíssimo conto. Espero que a autora também não esteja assim tão triste...

Beijão, Jacky!
Jaquelyne Costa disse…
Wllyssys!!
Muito obrigada,meu amigo!!
Você me dá uma forçona quando vem aqui,sabia?!
Beijos=**
Jaquelyne Costa disse…
Pois é, Gepp!!
O conto revela coisas de mim!!
Mas não estou triste não!!
É só "melancolia que não sai de mim, não sai de mm, não sai..."

Beijos,meu querido!
Afff... eu naum canso de ler isso! hehehe
Jah eh a segunda vez... heheheh
[momentos de abstração hehehe]
Ah... e enquanto leio aqui... toca a música "Bleeding Love" de Leona Lewis no meu player... hehehhe A letra num nada a ver com o poema... hehehe mas a melodia é bem romântica... hehhehe
Jaquelyne Costa disse…
É um pouco triste, e mesmo assim conquistei fã!!!
Poxa!!
Valeu,meu querido!!
Ah, sem falar que eu acho que poesia e música têm tudo a ver!!
Beijos=**

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