A moça das duas Marias e sua história de amor eterno
Era dia da padroeira da cidade. E já havia quase quatro
anos que não ia mais ver a procissão. Sua Maria havia ido para o céu, aquela
que lhe pedia manhosamente a companhia para cumprir de tão amoroso coração esse
compromisso de fé. Acovardou-se e preferiu ficar silenciosa e emaranhada entre
os lençóis e as brancas paredes de seu quarto, com medo da realidade abrir a
porta e lhe escancarar aquela dolorida verdade. O doce chamado para levantar-se
antes das sete horas da manhã nunca mais aconteceu. Ela ainda não havia
despertado para a herança preciosa que lhe haviam deixado.
Da cama ouviu os sinos bradarem pela manhã que já era o
dia da santa e a sua frente projetaram-se cenas antigas de quando na missa
especial, sua Maria dava seus passinhos apressados para pegar um bom lugar e o
jornalzinho para acompanhar o rito daquela Maria de quem se valia. Era festa,
esse momento, para a alma de Maria. Seu olhar ficava ainda mais intenso e
bonito porque o amor é quem governava seu lugar no mundo. A moça ficava entre o
desejo de dormir mais e acordar para ouvir as palavras do padre e cantar junto
ao coral os hinos marianos. A moça ainda não havia despertado.
Como era lindo presenciar o encontro das duas Marias de
sua vida. A primeira era aquela que lhe deu o ventre por abrigo, a segunda era
aquela que atendia sempre a primeira em suas orações e porque lhe havia pedido,
desde quando soube da pequenina semente, para que fosse madrinha daquele
pequenino ser. Era reconfortante sempre poder contar com o carinho das duas.
Bastava que a moça chegasse mais tristonha em casa, desabafar sobre o dia
pesado e minutos depois perceber que havia no quarto uma conversa entre
comadres, um pedido aqui e outro ali. Havia luz. A primeira Maria rezava e a
segunda sempre lhe atendia.
A moça foi crescendo e acompanhou toda essa relação de
cumplicidade. Sentia-se como que embalsamada para as maldades do mundo porque
tinha duas mães em sintonia, cada uma com seu “superpoder”. Mas houve o dia em
que a primeira Maria teve de ir, mansinho, como um passarinho quando levanta
voo do chão para um galho de árvore. Não deu tempo de despedidas, mas
acredita-se que a segunda Maria intercedeu a seu filho e a moça despediu-se da
mãe num sonho bonito ouvindo-lhe dizer que estava bem e bem pertinho do
Espírito Santo. É certo que hoje a moça continua a ter as duas Marias, sendo a
primeira seu anjo da guarda nessa nova morada.
E hoje, por força da saudade, a moça pegou o vidro da
colônia que a mãe muito gostava e banhou-se para que o cheiro doce dela ficasse
em suas roupas, hoje que a vontade era ainda maior de que tivesse em seu abraço
aquela a quem mais ama nessa vida. Banhou-se de amor e saudade. As lágrimas já
estavam prontas para cumprirem seu destino, mas as reteve. Deu ouvidos às
batidas em seu peito e olhou para a fotografia que mantem em seu armário. Agradeceu
a segunda Maria e pediu desculpas por não ter ido a sua festa. Fez promessa,
não dessas nas quais se chantageia o santo a dar algo em troca de ser atendido,
mas sim um íntimo voto de esperança e gratidão porque percebeu que suas Marias
sempre estão ao seu lado, ainda que invisíveis aos olhos. Abriu a porta do
quarto. Abriu a porta da vida para que a luz e o cheiro que emanava tomasse
conta da casa, do mundo, porque todo mundo precisava experimentar, nem que
fosse uma vez na vida, do que ela tem a graça de graça e por amor.
Jaquelyne Costa - Janefli desde nasceça - A moça das duas Marias
Comentários