A coisa, o barulho, a náusea
Estou aborrecida. Completamente enjoada. Aquele ronco causa-me náusea profunda, amofinha-me. Enquanto escrevo isso, ele vem chegando, ele e seu roncar que chama a atenção de quem estiver passando pela rua, assusta senhoras distraídas, animais cansados, atraindo olhares de moças atiradas, e de jovens que invejam a sua posição levemente curvada sobre a coisa. Sua chegada é sentida da avenida, e estremece até as divisórias das salas, com suas frouxas janelas de escura matéria. Sua saída por muitas vezes é confundida com trovões. Eu digo: não!Não há chuva nem trovões, é somente esse homem que se atreve a comparar-se ao deus Thor. Outro dia assustou-me, meu coração saltava no peito como uma pomba preste a voar, fez-me borrar uma palavra dum poema que acabava de sair de meus pensamentos que andavam distantes, passando do outro lado do céu. Isso foi um forte contribuinte para fazer surgir em mim essa náusea que transborda do infinito universo espiritual de meu ser. Vou pôr ordem a esse meu aborrecimento, que já me aborrece antes mesmo de eu pensar em explicar qualquer coisa que se remeta a este acontecimento diário, rítmico e infelizmente tão repetitivo.
Antes, num passado nem tão distante assim, um passado que não passa de meses, um ano no máximo, não havia aquele barulho insuportável em sua motocicleta. Era apenas o rodar da corrente, um som suportavelmente audível. Quase não se distinguia o seu barulho dos outros barulhos existentes nesse ambiente absurdamente urbano, encurralado de motores, apitos, buzinas, gritos, latidos, a barafunda que há nas ruas das cidades, empurros daqui, empurros dali. Melhor seria citar os tempos em que essa coisa motorizada não existia e que no mínimo, seus passos, seus passos eram imperceptíveis. Eram passos calmos, lassos, abafados, em sua simplicidade perdida. A colocação de um pé na frente de outro; o esquerdo se move para frente ao passo que o direito fica atrás, e vice e versa. O ato concomitante que o humano, como ser bípede, chama de andar, caminhar. Quando havia somente estes passos, não havia esse sentimento embrulhado, nauseado de desespero de não querer ouvir nunca mais aquele barulho.
Mas o homem não sabe desgrudar-se da máquina. Ele agora é máquina, uma máquina com alguns (poucos) traços humanos. A visão que tenho é horrivelmente estranha: uma máquina possuída por outra montada em seu dorso. Bizarro! Nem no mais futurista dos filmes se viu coisa assim. A nova compleição que lhe cabe é esta: seus braços começam a enrijecer, o metal duro e prateado sobe-lhe os riscos nervosos do pescoço unindo-se à cabeça, seus cabelos de cor cinza-pomba, as mãos alaranjadas corroídas pela ferrugem, os olhos vermelhos como óleo diesel, sua voz áspera, suas costas de adagas brilhantes, sua boca preta como asfalto. Sua barba composta por filetes de metalóides, seus dentes de platina, suas unhas de amálgama, seus nervos de irídio. Sua respiração é como o roncar do motor, já não sente amor nem dor, não sente quase nada, apenas emoções muito ínfimas, quase tolas. Ele, circunspecto de aço, e seu barulho malacafento!
Sim, lembrei-me dum trecho do livro A Pomba, de Patrick Süskind, que diz exatamente o que quero, portanto, aproprio-me delas (as palavras), serão minhas por este instante, aqui, cabíveis enormemente aqui. “Já não reina barulho suficiente nesta rua, na cidade inteira? Não basta o intenso calor que desce do céu? Vocês ainda precisam sugar com seus motores o último resto de ar respirável, para queimá-lo e soprá-lo, mesclado com veneno e ferrugem e fumaça quente, no nariz dos cidadãos decentes? Seus sacos de merda! Seus sujeitos criminosos! Vocês deveriam ser eliminados. Isso mesmo! Chicoteados e liquidados.” São como gralhas em ambiente errado, hienas descontroladas, esses homens equivocados, exibidos, orgulhosos e bestas! Suas defecações gasosas espalhadas pela atmosfera não mais azul, e sim um tecido escuro que repousa pesadamente sobre o planeta, como se quisesse sufocá-lo, apertando-o. Não são felizes, apesar de demonstrarem alguma reação que pode ser confundida à felicidade. Esse é o caso dele, que pensou ser mais feliz substituindo seus passos humanos por passadas de um objeto elétrico-motorizado. Ânimo fugaz, durando o tempo de dominar a fera de metal.
Esse barulho nojento enjoa-me, causa-me dores de cabeça, esse ar poluído que a máquina torce de seu único pulmão metálico, um cilindro acoplado à motocicleta tendo em si um orifício na forma de um oito aberto; repleto de micropartículas de CO2, o bióxido de carbono; um ar negro que me entra pelas narinas, pela boca, pelos poros da pele e chega até bem dentro de mim. O mundo inteiro poluído, inteiramente irrespirável, completamente porco! Olho para a coisa, parada lá fora como se nada houvesse acontecido, como se não acontecesse diariamente um grave crime. E como ela, milhões andam por aí, aderindo à moda de barulhar modernamente, impulsivamente, desconcertantemente, aborrecidamente, e tantas mentes fossem necessárias para expressar essa minha indignação, esse meu mal-estar. Ele, o motoqueiro-coisa, continua sugando o ar, a minha paciência, a minha paz, a minha saúde, o meu desejo de unicidade particular momentânea, de amplidão psíquica, de lembranças futuras...
Ah, sujeito sujo! Você vai pagar em moeda dobrada! Você, criminoso, viverá imundo, impregnado de seu erro para o resto de sua vida mesquinha, pobre e solitária. Sim, você que por dentro é uma fruta sazonada, um velho à beira da morte, seco, vazio, ou cheio demais de coisas chulas, que não vive a vida por vergonha dos outros, por medo, por angústia, por brio venenoso, por querer evitar um perigo iminente! Você, essa coisa maquinal, mistura de ligas de aço pigmentado, ferro, gases, orgulho ferrenho, inútil, infantil, cioso, exibicionista! Essa coisa sem sentido, inautêntica, inaudita, perdida, incabível nesse mundo pós-moderno, que de tão pós é póstumo desejo de ser. Você que se perdeu nos valores falsos, nos falsos sentimentos, nos falsos olhares que lhe dirigem, nos falsos amigos, falácias de estranhas pessoas, de pessoas que você nem conhece pessoalmente.Você não passa de uma coisa quebrável, trocável, que se pode jogar fora sem o menor remorso, que se pode pôr outro em seu lugar a qualquer momento. Um novo modelo, mais avançado, de cor inédita, mais caro, mais garboso, mais veloz, manchado pela luxúria, comandado pela voz da arrogância de quem se sente superior. Você, essa coisa, coisamente.
Antes, num passado nem tão distante assim, um passado que não passa de meses, um ano no máximo, não havia aquele barulho insuportável em sua motocicleta. Era apenas o rodar da corrente, um som suportavelmente audível. Quase não se distinguia o seu barulho dos outros barulhos existentes nesse ambiente absurdamente urbano, encurralado de motores, apitos, buzinas, gritos, latidos, a barafunda que há nas ruas das cidades, empurros daqui, empurros dali. Melhor seria citar os tempos em que essa coisa motorizada não existia e que no mínimo, seus passos, seus passos eram imperceptíveis. Eram passos calmos, lassos, abafados, em sua simplicidade perdida. A colocação de um pé na frente de outro; o esquerdo se move para frente ao passo que o direito fica atrás, e vice e versa. O ato concomitante que o humano, como ser bípede, chama de andar, caminhar. Quando havia somente estes passos, não havia esse sentimento embrulhado, nauseado de desespero de não querer ouvir nunca mais aquele barulho.
Mas o homem não sabe desgrudar-se da máquina. Ele agora é máquina, uma máquina com alguns (poucos) traços humanos. A visão que tenho é horrivelmente estranha: uma máquina possuída por outra montada em seu dorso. Bizarro! Nem no mais futurista dos filmes se viu coisa assim. A nova compleição que lhe cabe é esta: seus braços começam a enrijecer, o metal duro e prateado sobe-lhe os riscos nervosos do pescoço unindo-se à cabeça, seus cabelos de cor cinza-pomba, as mãos alaranjadas corroídas pela ferrugem, os olhos vermelhos como óleo diesel, sua voz áspera, suas costas de adagas brilhantes, sua boca preta como asfalto. Sua barba composta por filetes de metalóides, seus dentes de platina, suas unhas de amálgama, seus nervos de irídio. Sua respiração é como o roncar do motor, já não sente amor nem dor, não sente quase nada, apenas emoções muito ínfimas, quase tolas. Ele, circunspecto de aço, e seu barulho malacafento!
Sim, lembrei-me dum trecho do livro A Pomba, de Patrick Süskind, que diz exatamente o que quero, portanto, aproprio-me delas (as palavras), serão minhas por este instante, aqui, cabíveis enormemente aqui. “Já não reina barulho suficiente nesta rua, na cidade inteira? Não basta o intenso calor que desce do céu? Vocês ainda precisam sugar com seus motores o último resto de ar respirável, para queimá-lo e soprá-lo, mesclado com veneno e ferrugem e fumaça quente, no nariz dos cidadãos decentes? Seus sacos de merda! Seus sujeitos criminosos! Vocês deveriam ser eliminados. Isso mesmo! Chicoteados e liquidados.” São como gralhas em ambiente errado, hienas descontroladas, esses homens equivocados, exibidos, orgulhosos e bestas! Suas defecações gasosas espalhadas pela atmosfera não mais azul, e sim um tecido escuro que repousa pesadamente sobre o planeta, como se quisesse sufocá-lo, apertando-o. Não são felizes, apesar de demonstrarem alguma reação que pode ser confundida à felicidade. Esse é o caso dele, que pensou ser mais feliz substituindo seus passos humanos por passadas de um objeto elétrico-motorizado. Ânimo fugaz, durando o tempo de dominar a fera de metal.
Esse barulho nojento enjoa-me, causa-me dores de cabeça, esse ar poluído que a máquina torce de seu único pulmão metálico, um cilindro acoplado à motocicleta tendo em si um orifício na forma de um oito aberto; repleto de micropartículas de CO2, o bióxido de carbono; um ar negro que me entra pelas narinas, pela boca, pelos poros da pele e chega até bem dentro de mim. O mundo inteiro poluído, inteiramente irrespirável, completamente porco! Olho para a coisa, parada lá fora como se nada houvesse acontecido, como se não acontecesse diariamente um grave crime. E como ela, milhões andam por aí, aderindo à moda de barulhar modernamente, impulsivamente, desconcertantemente, aborrecidamente, e tantas mentes fossem necessárias para expressar essa minha indignação, esse meu mal-estar. Ele, o motoqueiro-coisa, continua sugando o ar, a minha paciência, a minha paz, a minha saúde, o meu desejo de unicidade particular momentânea, de amplidão psíquica, de lembranças futuras...
Ah, sujeito sujo! Você vai pagar em moeda dobrada! Você, criminoso, viverá imundo, impregnado de seu erro para o resto de sua vida mesquinha, pobre e solitária. Sim, você que por dentro é uma fruta sazonada, um velho à beira da morte, seco, vazio, ou cheio demais de coisas chulas, que não vive a vida por vergonha dos outros, por medo, por angústia, por brio venenoso, por querer evitar um perigo iminente! Você, essa coisa maquinal, mistura de ligas de aço pigmentado, ferro, gases, orgulho ferrenho, inútil, infantil, cioso, exibicionista! Essa coisa sem sentido, inautêntica, inaudita, perdida, incabível nesse mundo pós-moderno, que de tão pós é póstumo desejo de ser. Você que se perdeu nos valores falsos, nos falsos sentimentos, nos falsos olhares que lhe dirigem, nos falsos amigos, falácias de estranhas pessoas, de pessoas que você nem conhece pessoalmente.Você não passa de uma coisa quebrável, trocável, que se pode jogar fora sem o menor remorso, que se pode pôr outro em seu lugar a qualquer momento. Um novo modelo, mais avançado, de cor inédita, mais caro, mais garboso, mais veloz, manchado pela luxúria, comandado pela voz da arrogância de quem se sente superior. Você, essa coisa, coisamente.
Comentários
Me dá até vergonha de continuar a escrever.
Bjos querida.
Oxe!Tenha não!!
Você escreve divinamente bem,sabe até que eu me assutei porque não sabia que você tinha esse lado!
Vomite tudo o que há!
Eu adoro o que vem de você!
Beijos,meu querido!
Também odeio tais exibicionistas sob rodas.
Eu xingo bem é?!!
Rsrs....
Obrigada,meu querido!!
Você é maravilhoso!!!
;)
Fique muito à vontade por aqui!!
A casa, ops, digo, o blog é seu!!!
Abraços!!